O
ex-presidente-executivo dos Escoteiros da França e ex-secretário geral
adjunto da Organização Mundial do Movimento Escoteiro, Dominique
Bénard possui uma rica experiência em voluntariado e já vivenciou o
Escotismo e o benefício da educação não formal em diversas
perspectivas. Hoje ele está envolvido em diversos projetos no
Afeganistão e reforça a importância dos trabalhos voluntários que
desenvolveu ao longo dos anos. Dominique Bérnard frisa, inclusive, que
esses cargos são tão relevantes quanto suas posições profissionais.
Para ele, “a verdadeira força do Movimento Escoteiro é sua enorme
rede de voluntários”. E por ser um grande nome no Escotismo, Dominique
Bérnard será um dos palestrantes da primeira edição do Congresso
Nacional Escoteiro de Educação, que acontece entre os dias 22 e 24 de
novembro em Hong Kong, na China. O evento reunirá pessoas de mais de
200 países e territórios onde há escoteiros para debater e trocar
experiências sobre os aspectos educacionais do Movimento. Todo o
congresso será transmitido online e você pode acompanhar pelo site www.worldscouteducationcongress.org.
A equipe do Congresso Mundial Escoteiro de Educação (WSEC) teve o
privilégio de conversar e discutir com Dominique Bénard sobre vários
temas – incluindo seu discurso no evento, sua percepção da juventude de
hoje, e seus pensamentos sobre a educação formal e a não formal, entre
muitos outros tópicos. Abaixo você confere o bate-papo com um dos
grandes nomes do Escotismo Mundial.
WSEC: Você pode explicar, em poucas palavras, o conteúdo do seu discurso no Congresso?
Dominique: Eu comecei a minha carreira profissional como
psicólogo no sistema de ensino na França, e a partir deste momento eu
fiquei convencido de que é impossível transmitir valores, habilidades e
conhecimentos para os jovens apenas por meio de aulas. Conforme
demonstrado por pesquisas, a única maneira de apoiar os alunos na
aquisição de valores, habilidades e conhecimentos é propor-lhes um
ambiente de aprendizagem baseado na experiência, no diálogo e na
cooperação. Assim, a minha palestra é entitulada: "A aprendizagem por
meio da experiência, do diálogo e da cooperação". Eu acredito que estes
são os pilares do Método Escoteiro e que o sistema de educação formal
também deve adotar essa abordagem.
WSEC: O que é "juventude" para você?
Dominique: Juventude tem um duplo significado para
mim. Primeiro, é uma época da vida em que os seres humanos têm de
enfrentar uma série de desafios, dificuldades e até perigos. Vamos
pensar em como a transição da adolescência para a idade adulta é, nos
dias de hoje, difícil e dura em muitas partes do mundo para milhões de
jovens que procuram encontrar um lugar na sociedade. Mas a juventude é
também um estado de espírito. O General Douglas MacArthur escreveu: "A
juventude não é um período de tempo, é um estado de espírito, um
resultado da vontade, uma qualidade da imaginação, uma vitória da
coragem sobre a timidez, do gosto pela aventura sobre o amor ao
conforto". Concordo plenamente com esta definição e me atrevo a dizer
que, mesmo com quase 72 anos, eu ainda me sinto jovem. O Escotismo é
capaz nos ensinar a permanecer jovem ao longo de toda a sua vida, ou
seja, para ser um agente de mudança. Eu acredito que a missão da
juventude tem sido sempre trabalhar para mudar e melhorar o mundo e
lutar contra as forças do conservadorismo e imobilidade.
WSEC: Em uma época em que a educação formal está captando
cada vez mais e mais métodos da educação não formal, como você vê o
surgimento de um espaço misto, chamado de Escola Aberta?
Dominique: Este poderia ser um sonho e um objetivo
para o futuro. É por isso que eu trabalho para a promoção de uma
abordagem de aprendizagem por meio da experiência, do diálogo e da
cooperação, mas, infelizmente, eu visitei muitas escolas em muitos
países e posso dizer-lhe que o velho sistema de ensino, a abordagem da
“educação bancária”(1) , como era chamada por Paulo Freire, ainda
existem em todas as partes do mundo - inclusive no meu país. Este é um
sistema de ensino em que alunos são "folhas em branco" para que os
professores os encham de informações, em que os alunos sentam-se
passivamente e absorvem informações, sem ter o direito de cooperar com
os outros nem de explorar por si só. Um sistema em que ideias abstratas
são memorizadas por meio de regras e, em seguida, aplicadas a outros
problemas enlatados. Este sistema é a fonte da violência que existe em
muitas escolas. Infelizmente, com frequência, eu vi professores se
tornarem voluntários no Escotismo e importarem para o nosso Movimento
este sistema tradicional. É por isso que eu dou as boas vindas ao 1º
Congresso Mundial Escoteiro de Educação (com Eduardo Missoni, em 2007,
por ocasião do centenário do Escotismo, organizamos um evento similar).
Espero que o evento gere iniciativas e projetos que colaborarão para
que as coisas caminhem em outra direção: Líderes Escoteiros têm um
papel na educação formal, transformando-a em uma verdadeira "escola
aberta" .
- Freire – “defendia uma educação assumidamente ideológica” –
propunha uma prática de sala de aula que pudesse desenvolver a
criticidade dos alunos e condenava o tradicionalismo da escola
brasileira, que chamou de “educação bancária”, em que o professor
deposita o conhecimento em um aluno desprovido de seus próximos
pensamentos. Tal sistema, diz, só manteria a estratificação das classes
sociais, servindo o ensino de mero treinamento para a formação de
massa de trabalho. Contrariamente, Freire propunha a construção do
saber de forma conjunta, em que o professor se aproxima dos
conhecimentos prévios dos estudantes, para com essas informações serem
capazes de apresentarem os conteúdos aos alunos, que teriam poder e
espaço para questionar os novos saberes.
WSEC: O que você percebe como as principais ameaças para o Movimento Escoteiro em todo o mundo?
Dominique: Eu vejo três principais ameaças. A
primeira é o perigo de o Movimento Escoteiro sua unidade e sua
especificidade. A força do Movimento foi a sua extraordinária capacidade
de se adaptar a diferentes culturas, e isso deve ser preservado, mas a
dificuldade está em manter sua unidade e sua especificidade quanto aos
seus propósito e método. A especificidade do Método Escoteiro -
"aprender por meio da experiência, do diálogo e da cooperação " deve
ser preservada e promovida. A segunda ameaça para o Movimento Escoteiro
é perder a sua independência, pois, como ele ainda tem um poder
incrível de atrair os jovens, vários grupos que são externos do
Escotismo - governos, instituições religiosas, partidos políticos, etc -
querem usar este poder para seus próprios interesses. A terceira
ameaça que eu vejo é a falta de pensamento crítico que existe em vários
níveis do Movimento. O que os escoteiros gostam acima de tudo é o
sentimento de unidade e este entusiasmo, por vezes, os leva a evitar o
pensamento crítico sobre o seu próprio Movimento, a fim de ver seus
pontos fracos e trabalhar para melhorá-los. Devemos prestar atenção à
tendência exagerada de auto-congratulação que muitas vezes ocorre em
nosso Movimento.
Em poucas palavras ...
WSEC: Se você estivesse em Hong Kong por apenas uma tarde, de que sessão(ões) participaria?
Dominique: "Descubra as diferenças: participação juvenil, envolvimento e empoderamento",
porque, de acordo com minha experiência, este ainda é o ponto fraco do
Movimento Escoteiro ao redor do mundo. Em muitos lugares, os líderes
ainda não entenderam que o Método Escoteiro é baseado no envolvimento
dos jovens na tomada de decisões e na força da juventude. Com muita
frquência, o sistema de patrulha é apresentado e percebido apenas como
um sistema de trabalho em pequenos grupos, embora seja um sistema de
envolver os jovens na tomada de decisões e de valorizar a força da
juventude.
WSEC: Quem é a pessoa que mais influenciou em sua vida escoteira?
Dominique: Um ex-presidente-executivo da Scouts de
France chamado Michel Rigal que me mostrou a importância do Ramo
Pioneiro. Eu acredito fortemente que a qualidade de um programa
Escoteiro não é medido pelo número de crianças e jovens que entram no
Movimento a cada ano, mas o número de jovens adultos que saem do
Movimento a cada ano com a motivação e as habilidades necessárias para
contribuir e desempenhar um papel ativo na sociedade.
WSEC: Além de B-P, quem você considera como
grandes contribuintes (como educadores) para o desenvolvimento da
teoria da educação não formal?
Dominique: Pessoalmente, eu tenho três referências na
educação. São três grandes figuras que trouxeram uma nova visão da
educação: Robert Baden-Powell, é claro, porque ele construiu o maior e
mais atraente Movimento juvenil no mundo. Célestin Freinet, um
educador francês que tentou mudar o sistema escolar por meio da
introdução de uma aprendizagem ativa e cooperativa em sala de aula. E
Paulo Freire, o grande educador brasileiro que inventou a educação
popular através do diálogo.
WSEC: Você acredita que alguma das
percepções da B-P são obsoletas na sociedade atual por elas
representaram uma posição fortemente influenciada pelo “Eduardismo”
(rei Eduardo VII do Reino Unido) quando foram desenvolvidas?
Dominique: É óbvio que alguns escritos de B-P
possuem aspectos obsoletos hoje - particularmente as passagens de
"Caminhos para o sucesso", o livro que ele escreveu para os pioneiros.
No entanto, se você ler "O guia do chefe escoteiro” ou alguns artigos
que ele escreveu antes e depois da Primeira Guerra Mundial no
“Headquarters Gazette” ou no Jamboree, você ficará surpreso por seus
aspectos visionários e seu alto valor para a educação contemporânea.
WSEC: Que habilidades escoteiras lhe foram mais úteis em sua vida adulta?
Dominique: Senso de humor, a capacidade de olhar a
vida com alegria e fazer amigos, amor à natureza, a capacidade de
observar situações e pessoas, pensar criticamente, empatia e capacidade
de compartilhar com os outros, capacidade de "pensar fora da caixa" e
encontrar soluções inovadoras, senso prático e a capacidade de viver
com coisas simples .
WSEC: Você acha que nós devemos ter faixas etárias minimas e
máximas para a adesão ao Escotismo? Qual é, na sua opinião, a idade
mínima que uma criança seria capaz de "receber" uma Educação Escoteira
e qual seria a idade limite?
Dominique: Sim, eu acho que há uma tendência perigosa
em nosso Movimento de ampliar demais a faixa etária do Program
Escoteiro. O Método Escoteiro é cooperativo, por isso não pode ser
aplicado às crianças que ainda não desenvolveram a capacidade de
cooperar com os outros. Além disso, o Escotismo é um movimento de
jovens e para jovens, então eu acho que os cães velhos como eu, mesmo
que tenham mantido o espírito da juventude, devem deixar seu lugar
para as pessoas mais jovens.
Tradução e adaptação
Equipe Nacional de Imagem & Comunicação